domingo, 1 de agosto de 2010

A Boneca Vermelha (conto)


Dom Casmurro : Contos


A BONECA VERMELHA • Ricardo Silvestrin

Aquela foi a única boneca que sobreviveu desde a sua infância. Vestido vermelho, cabelos loiros, olhos azuis. Só faltava falar. Mas como sua mãe sempre dizia: não se pode ter tudo. Falava então com a boneca e pela boneca. Horas e horas no quarto, entre panelinhas e carrinhos de bebês. Tinha também um boneco de terno e gravata-borboleta. Era o namorado da boneca de vestido vermelho. Na adolescência, mudou o quarto. Pôsteres na parede, caixa de bijuterias, estante de livros. Mas em cima da cama, a boneca. Teve alguns namorados, mas não gostou mesmo de nenhum. Sempre faltava alguma coisa. Os que sabiam conversar não a atraíam. E os que a atraíam não sabiam conversar. Foi se acostumando a não se envolver muito com ninguém. Passou no vestibular. Medicina. Fez os quatro anos de faculdade com o maior interesse. Quando começou o estágio, conheceu um médico residente durante os plantões da madrugada. Ele a atraía muito. No princípio, não deu muita bola, pois já sabia que provavelmente não teriam muito que conversar. Mas ele insistiu na aproximação. Foram noites e noites de longos papos surpreendentes e divertidos. Logo virou namoro e em seguida casaram. Depois de dois anos, tiveram uma filha. Quando a menina fez quatro anos, ganhou da mãe a velha boneca de vestido vermelho, que estava guardada no armário. Com o passar dos dias, ela olhava para a filha com a boneca, olhava para a casa, para o marido, para o consultório e sentia um mal-estar. Era como se tudo estivesse errado. Tentou não pensar naquilo. Conseguiu até disfarçar por anos e anos. Ninguém percebia. Por fora ela era a mesma. Mas por dentro algo ruía. Quando a filha completou sete anos, veio o divórcio. O marido não entendia nada. O que faltava a ela? Não teve resposta. Se tivesse, tudo seria mais fácil até pra ela. Foi embora com a filha e a boneca. Foram dois anos de tristeza para os três. O ex-marido a procurou várias vezes. Conversaram durante horas e horas. Mas nada. A filha se dividia entre os dois. Durante a semana com a mãe, fim de semana com o pai. E ela trabalhava sem pensar de segunda a sexta e tentava dormir no fim de semana. Foi num dos tantos sábados em que perdeu o sono que ela foi pegar a boneca no quarto da filha. Lembrou de quando era pequena. De como adorava aquela boneca, das panelinhas, do carrinho de bebê. De repente, lembrou do namorado de terno e gravata borboleta. Chorou muito, não sabe dizer por quanto tempo. Dormiu já de manhã. Sonhou com a boneca falando. Era uma voz parecida com a de sua mãe. Tentava ouvir o que dizia, mas era difícil, longe. Em volta, o quarto bonito, recém-pintado, o carrinho do bebê, o boneco namorado. Até que a voz da sua mãe na boneca disse: não se pode ter tudo. Acordou assustada com a boneca nos braços. Quando a filha voltou no domingo de noite, sua mãe perguntou se poderia jogar a boneca fora, pois já estava toda velha e até cheirando mal. A menina, um pouco surpresa, disse que a sua mãe era a verdadeira dona. Podia então fazer o que quisesse. O caminhão do lixo levou no outro dia a boneca dentro de um saco azul. Algumas semanas depois, procurou o marido e perguntou se ele ainda gostaria de voltar para ela.

RICARDO SILVESTRIN é poeta, escritor, músico e editor. Autor de O menos vendido, Play, O videogame do rei, entre outros. Vive em Porto Alegre (RS).

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